Educação: sobre o que mais nos aflige

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A educação é um dos assuntos mais debatidos nas últimas décadas e, ao mesmo tempo, o que mais parece estar longe de uma solução ou remediação. Para encontrarmos uma solução, é necessário compreender o que está de errado no seu funcionamento e dar seu diagnóstico. Mas estamos fazendo isso? Se sim, estamos pensando na chave correta?

O corpo, quando doente, demonstra, através dos sintomas, uma desordem no seu funcionamento e, por isso, é tão fácil reconhecer quando há algo de estranho. Algumas doenças são mais silenciosas, mas, inevitavelmente, os sintomas aparecerão, cedo ou tarde, e será possível constatar: está doente. Se, por outro exemplo, o balanço de uma empresa não é positivo, tão logo, denuncia possíveis falhas de ordem administrativa, de eficiência, mercadológica ou de confiança.

Entretanto, para obter um diagnóstico e localizar o que está arruinando um corpo ou uma empresa bastam um médico e um auditor. Não levaria muito tempo e tão rápido se iniciaria o tratamento e a devida gestão. Mas quando se trata de educação, que não é menos importante que saúde física e estabilidade econômica, parece que, por um lado, não estamos sabendo diagnosticar o problema e, por outro, tão pouco apresentar uma solução.

Na realidade, as espiraladas conversas, debates, entrevistas e pesquisas mal sucedidas em torno da educação demonstram que a discussão se figura como um cachorro que gira em torno do próprio rabo e, ao compará-la novamente com a medicina, se parece mais com um paciente portador de uma doença rara em que o diagnóstico é, ainda, confuso, e seu tratamento, consequentemente, é precário e ineficaz.

Bottegas: Educação pelo fazer.

Curioso é pensarmos que, no passado, a educação, inegavelmente, “dava certo”. Isso se torna evidente se olharmos para os homens do Renascimento, um pelotão de grandes gênios que se prestavam ao trabalho árduo de vidas inteiras em torno do desenvolvimento do talento, da incansável busca pela perfeição (aliás, essa palavra é, hoje, evitada quando se fala de educação e, talvez, por ai, se revele um sintoma). Grandes nomes da pintura coabitavam tanto em época como em país[1], a exemplo, a aspirada Florença, com Ghirlandaio, Perugino, Verrochio, Lorenzo di Credi, Leonardo da Vinci, Sandro Botticelli, os irmãos Pollaiolo, Filippino Lippi; em Roma, pouco mais tarde, Michelangelo e Rafael Sanzio; em Veneza, Giovani Bellini, o jovem Ticiano, Giorgione, dentre tantos outros; na arquitetura e engenharia, como Donato Bramante, representando o auge do período que Filippo Brunelleschi preludia com seu importante tratado; na filosofia, Marsílio Ficino, Nicolau Maquiavel, Erasmo de Rotterdam, Thomas Morus; e Luca Pacioli na matemática.

O Renascimento herda, da Idade Média, muito do que construíra em termos de metodologia em seus Colégios e Universidades, onde a vida intelectual acontecia como uma imersão com duração de, no mínimo, dez anos ao lado de mestres (ou um único mestre como no caso das bottegas, ateliers italianos dos pintores mais velhos), pelos quais os alunos atuavam como seus auxiliares, dando continuidade aos seus trabalhos, sempre com olhos firmes nas obras dos clássicos. Essa imitação dava condições de, progressivamente, se desvincularem das reproduções, rumo às composições de autoria própria. Hierarquia e disciplina eram bem enfatizadas. As competições (chamadas emulações[2], que seguem modelo das disputatios medievais) eram estimuladas entre os alunos a fim de que se desafiassem (no sentido do combate justo e respeitoso) e, desse modo, adquirissem experiência mais próxima do que é a vida real: uma constante disputa em cima da auto qualificação, sem deixar de respeitar e admirar seu adversário.  Esse modelo foi sustentando, principalmente, nas Companhias de Jesus através dos jesuítas do século XVI em diante, e é devedor de uma profunda tradição sustentada pelas Artes Liberais com grandes nomes como Agostinho de Hipona (século V), Hugo de São Vítor, Pedro Abelardo (os dois no século XII), dentre tantos outros. A qualidade do ensino de alto nível perdurou até o século XVIII, quando se inicia, progressivamente, sua desqualificação no que chamam de período de excessiva sensibilidade[3] no ensino.

Santo Agostinho de Hipona (354 d.C – 430 d.C), de Philippe de Champaigne

Ora, se “tudo que vêm depois é melhor” ou se nos entregarmos à doce ilusão de que a humanidade esteja em consecutivo crescimento científico e, com isso, querermos defender uma linha intelectual e, até, moral progressivas, sempre fadadas ao aprimoramento, então a que se deve a evidente decaída? Os resultados estão não apenas em provas do PISA mas, muito melhor ilustrados na condição dos nossos “intelectuais”. As universidades brasileiras, a exemplo, não apresentam um filósofo há décadas, somente professores que julgam conhecer a fundo as grandes e complexas filosofias do passado, mas que, na verdade, transmitem apenas fórmulas supérfluas e batidíssimas. Não há nada de novo capaz de competir com o edifício intelectual que os antigos se propuseram a construir[4]. Com efeito, enquanto acharmos que seria muita humilhação revisitarmos os clássicos e procurarmos entender como se davam as metodologias pedagógicas e práticas de ensino em diversos períodos da história (a começar pelos mais proeminentes), continuaremos a nos comportar como os jovens mimados costumam fazer na presença dos conselhos dos mais velhos.


[1] – “todos os contemporâneos e dentro do mesmo perímetro…. Uma sorte ou um milagre” como descreve o espírito do período, Sophie Chauveau, biógrafa de Leonardo da Vinci.

[2] “A emulação acompanha a fraternidade”, CHAUVEAU, Sophie, Leonardo da Vinci, p. 25, Editora L&PM, Porto Alegre, RS, 2017

[3] FRANCA, Padre Leonel, O Método Pedagógico dos Jesuítas – Ratio Studiorium, p. 69, Edições Hugo de São Vítor, Porto Alegre, 2019.

[4] Erwin Panofsky compara o pensamento e a metodologia filosófica dos escolásticos da Idade Média com a complexidade da construção escalonada e hierarquizante das catedrais góticas em sua Arquitetura Gótica e Escolástica, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2012


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