Sobre um gênio

511
0
Compartilhar:

Alfonse Mucha, pintor e gravurista tcheco que iniciara sua carreira com encomendas comerciais e pôsteres para peças de teatro encontrou, nesses efêmeros trabalhos, razão para ser lembrado como um dos artistas mais proeminentes e influenciadores de profissionais de design, ilustração, animes, graffite e outras correntes artísticas de grande importância.

Alguns artistas influenciam o surgimento de outros posteriores muito mais do que o tempo e a corrente artística dos quais estão inseridos poderia os determinar. Suas semelhanças são tão numerosas que parecem mais como uma continuidade independente da habitual sequência de correntes estilísticas compreendidas nos manuais de arte. A diferença pode estar no fato de que o fluxo dos manuais se restringe à sequência temporal, enquanto que, para o leitor estudioso de arte atento, deverá seguir um fluxo reflexivo sobre tal e tal pintor, realizado por meio de associação de ideias, ativas, portanto, num plano atemporal.

Um grande artista como Picasso, em pleno despertar do século XX, se inspirou nas máscaras africanas bem como ocorreu com Gauguin que se permitiu ir conviver com povos primitivos a fim de trazer algo de mais rudimentar e autêntico para sua obra. Não há previsões para tais fenômenos e, o mais interessante é que, para estes artistas, provavelmente, não haveria também, pois trata-se de uma reação espontânea de identificação e familiarização do espírito. Essa reflexão é muito mais profunda, pois revela o caráter transcendental da arte e nos dá esperança de sermos muito mais que homens presos ao nosso tempo. Com efeito, não seria uma corrente artística que determinaria o destino da obra de um gênio como Alfonse Mucha pois fez nada mais que respeitar seu íntimo.

Na fervura dos acontecimentos de sua época, após as insatisfações dos artistas diante dos excessos do academicismo clássico e do romantismo, os meados e final do século XIX se encarregaram de fazer pulular os movimentos artísticos que se desdobraram indeterminadamente, dando razão para o século XX ser os cem anos dos “ismos”.

Poderíamos afirmar que tudo começou quando um grupo de artistas do século XIX que se auto intitulavam “Pré-Rafaelitas” começam a abordagem estética com o olhar na contramão daquilo que o renascimento herdou a partir, especialmente, da figura de Rafael Sanzio, e decidiram por bem se espelharem nos mestres góticos anteriores ao humanismo da Idade Moderna, na tentativa de se libertarem das determinações da escola clássica que se criara desde então. O fato é que esses pintores não estavam sozinhos na busca medieval. Esse é o ponto mais interessante.

Pouco mais novos, mas ainda contemporâneos, foram os simbolistas e nabis. É muito curioso reconhecer que os desenhos e gravuras do inglês Aubrey Beardsley é carregado de figuras ornamentadas e minimalismos compositivos incomuns à sua época, ao menos na Europa, visto que recebera influência das nanquins orientais, dando grande demonstração de autenticidade em seu estilo. Muitos foram os que usaram das ornamentações e símbolos como as austeras figuras femininas do austríaco Gustav Klimt, todos motivados (muito provavelmente) pelas reações iconófilas e misteriosas de artistas mais velhos como o inglês Dante Gabriel Rossetti e o francês Gustave Moreau. Nestes, a pintura é mais devedora do estilo gótico no sentido do uso de perspectivas simples daquela época, sem contar com cores mais opacas e estilização das fisionomias femininas.

Dentre três distintas, porém paralelas correntes artísticas, surge o gênio de Alfonse Mucha, que segue caminho próprio na pintura e ilustração, gerando uma tendência que nomearão de Art Nouveau.

Mucha demonstra, através de seus arranjos, que todos elementos da composição estão carregados de sentido e podem colaborar para o tema. Sua busca primitiva está naquilo que surgiu na Inglaterra saxã e Irlanda celta nos séculos VII e VIII com os monges e missionários da tradição cristã: obtendo, através dessa simbiose estilística entre o povo nativo primitivo e o gótico inicial, um estilo novo, maravilhosamente bem orquestrado de motivos entrelaçados, baseados em corpos de animais como dragões ou serpentes. O evangelho, as iluminuras, tudo ganhou esse ar primitivo da decoração animalista geometrizada. Foi nesse intrigante momento da história da arte que Mucha se inspirou.

Seu traçado trata os motivos decorativos com grande independência, extremamente espontâneo e bem harmonizado com as figuras femininas. É possível reconhecer, nos tecidos e fumaças (de cigarro, impressas, por exemplo, em cartazes da JOB) uma semelhança da maneira como são resolvidas, como grandes massas sinuosas que nos parecem densas ao mesmo tempo que flutuam com grande elasticidade. Em paralelo, os cabelos e os ramos da folhagem que se espalham pela composição, a fim de assegurar o ritmo compositivo, são facilmente confundidos pois Mucha os trata similarmente, como se fios de cabelo e caule de plantas tivessem a mesma natureza. Talvez fosse justamente esse seu objetivo: promover a dança harmônica dos elementos humanos e naturais.

Os símbolos são recorrentes em sua obra e isso confere a Mucha um caráter espiritual, tornando seu trabalho nobre, mesmo quando a finalidade fosse rótulo e embalagem de produtos. Poderíamos aqui destacar, a exemplo, o uso incansável da circunferência, forma esta que, desde os tempos antigos, simboliza perfeição e alusão ao divino e sua criação – o ponto central e sua emanação –  ao mesmo tempo que confere dinamicidade à composição, oferecendo a sensação de equilíbrio e ordem.

Estilo e delicadeza são sua marca. A intenção de seu trabalho está expressa em seu aforisma “a missão da arte é incentivar as pessoas a amar a beleza e a harmonia”. Nos temas que tratou, tanto em trabalhos comerciais quanto pessoais, nunca perdeu sua identidade, utilizando o corpo feminino como receptáculo das virtudes de maneira icônica, como entidades ideais através de sua perfeita e encantadora harmonia.


Deixe um comentário