Arte como engajamento social?

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Liev Tolstoy declarou que “a arte é um órgão espiritual da vida humana”[i]. Se podemos considerar, por um lado, que toda pintura guarda em seu bojo, uma ascese mística e, portanto, sagrada, por outro, diferentemente, não podemos dizer que a arte é instrumento de engajamento social.

A exposição recém finalizada no MASP, “Histórias das mulheres e histórias feministas” contou com inúmeros trabalhos – pinturas a óleo, aquarelas, desenhos e têxteis – dos quais havia apenas um que poderíamos atribuir, anacronicamente, a uma manifestação de viés “feminista” – ainda que exclusivamente isolada – desde que, porém, entendamos o feminismo como movimento legítimo das mulheres em busca de seus direitos na sociedade e, antes de tudo, da sua dignidade. Mas como, infelizmente, os “ismos” que surgiram a partir da virada da época moderna da nossa história dedicam-se a reducionismos, como bem caracterizou um dos maiores filósofos do século XX, o brasileiro Mário Ferreira dos Santos, não podemos, a rigor, atribuir o feminismo que sugere o título a nenhuma das obras expostas por puro e simples anacronismo.

A fim de compreender esse gritante fato, não é necessário que seja um especialista em história ou ciências políticas, nem sociologia, por se mostrar quase que auto evidente. Basta abrir uns “livrinhos” de história.

A luta pelos direitos por parte das mulheres surgiu muito recentemente, pelo qual seria mais exato situarmos a partir do período da Revolução Industrial (meados do século XIX) quando, sem sombra de dúvidas, não apenas as mulheres mas toda a classe trabalhadora extraditada da zona rural aos centros urbanos necessitavam ser atendidas com relação a direitos básicos. Ocorrera como no princípio da formação dos povos europeus quando, a partir de notório crescimento demográfico, as regras ou “leis” daquele povoado não bastavam para acompanhar os novos hábitos econômicos e emergências sociais que viriam a emergir.

Retrato pela pintora poloneza Anna Bilinska-Bohdanowicz (1857-1893)

A busca pelo tema social ou político dentro da arte é o que Ortega y Gasset caracterizou como tema “estéril”, pois “tomar a arte pelo lado dos efeitos sociais se parece muito com trocar os pés pelas mãos ou estudar o homem pela sua sombra” [ii]. Porém, esse fenômeno é comum hoje no âmbito artístico, ou a partir apenas no Neoclássico.

Há, entretanto, que se preocupar com uma verdade: a ausência lamentável de artistas mulheres catalogadas nos livros de história. Mas isso ainda levanta uma importante advertência que temos de nos acometer quando optamos por um recorte da história da arte como no da exposição, que almejou expor trabalhos feitos entre os séculos I e final de XIX (dentre os quais, apenas as peças têxteis datam de antes do século XV): poucos são os pintores mencionados – homens e mulheres – dos séculos anteriores ao cinquetento. Importante ressaltar que Alberti menciona que a pintura era hábito comum entre as mulheres, quando a pintura ainda não contemplava o terreno das sete artes. A figura do artista na sociedade fora considerada durante toda a Antiguidade e Idade Média como de trabalhador servil, ao contrário do músico e dentre outras “artes” (as chamadas sete artes liberais). Apenas a partir do século XVI, quando a discussão renascentista reivindicou o estatuto do pintor a de um legítimo artista detentor do conhecimento de uma ciência, é que seus nomes foram lembrados e exaltados devidamente (ou exacerbadamente em outros casos).

Poucos são os pintores mencionados – homens e mulheres – dos séculos anteriores ao cinquetento. Importante ressaltar que Alberti menciona que a pintura era hábito comum entre as mulheres, quando a pintura ainda não contemplava o terreno das sete artes.

A questão dos direitos da mulher é tão relativa se nos atentarmos ao fato de que, em diversas épocas da história, e em diversos povos e civilizações elas foram ora exaltadas ora menorizadas. Portanto dizer que sua história se reduz a uma luta feminista é sintomático e indicativo de argumento pueril e falso. Para citar um exemplo nesse breve artigo, a medievalista Régine Pernoud, que se dedicou a estudar a posição da mulher na Idade Média e que, ao contrário do estigma criado em cima tanto da “Idade das Trevas” quanto do “maxismo inabalável da sociedade patriarcal”, defende que as mulheres tinham um papel fundamental na sociedade, ainda que predominantemente dentro da Igreja (e era, inclusive, extremamente protegida por esta instituição “tão retrógrada”) mas também na vida laica como senhoras de feudos, sem falar da importância para a vida familiar na questão propedêutica dos filhos e, por esse motivo, detinham mais conhecimento que os homens que, se se dedicassem nas letras seguiam a carreira de padres ou mestres dentro da igreja, se não, a grande maioria detinha aos ofícios militares e, tão logo, afastados por completo dos estudos.

A exposição, com a sua enorme fartura de demonstração de talento e habilidade, revela que as mulheres emergiram na arte da pintura e, mesmo que não possamos dizer que igualitariamente, elas não ficaram aquém aos homens na busca artística. Outro aspecto recorrentemente mencionado nas histórias dessas artistas, é o de que algumas delas, como discípulas de grandes mestres, tiveram suas obras erroneamente atribuídas a eles, sendo que vale lembrar que se trata de uma falha que nunca teve gênero (como se costuma falar hoje). Entretanto, mais de meia dúzia das artistas citadas tinham em companhia seus maridos como auxiliares ou sócios, sem falar nos prêmios que receberam em épocas e nacionalidades distintas. Sinal de que eram reconhecidas pela qualidade de sua obra.

Ademais, o feminino é um dos temas mais constantes da história da arte e, com efeito, mesmo que elas não estivessem pintando, eram representadas como damas ou madonas, musas, divindades mitológicas e, um dos mais consagrados temas da pintura de diversos períodos da história da arte, a Virgem, mãe imaculada de Jesus. Na mostra, dentre naturezas-mortas, paisagens e outros temas, o retrato feminino foi bastante acentuado, parecendo ser, inclusive, preferência entre as artistas. Pintoras como as polonesas Anna Bilinska e Olga Boznañska, a primeira com forte rigor técnico, ainda que potencialmente poética, e a segunda apresentando traços dissolvidos numa forte e expressiva unidade orgânica marcam dois polos interessantíssimos de contemporâneas e conterrâneas que souberam buscar sua autenticidade. Se faz necessário destacar peculiaridades como a aquarela de Caroline Gower, da Grã-Bretanha, que no período que esteve no Brasil com seu marido, deixou um dentre outros trabalhos perdidos, uma maravilhosa e singela paisagem em formato panorâmico da baía de Guanabara, e o desenho da pintora holandesa Thérèse Schwartze, que com seu dom inegavelmente aparente em um desenho de sua sobrinha, deu subsídio financeiro à sua família com sua carreira proeminente. Vale pesquisar toda sua obra para perceber o mesmo equilíbrio expressivo que as polonesas obtiveram, revelando pinceladas vibrantes em retratos finamente realizados. Demonstrações plenas de um vigor representacional que merece seu devido destaque e que revela, por si só, uma necessidade interior, de almas que alimentam dentro de si a vontade genuína de exteriorizar aquilo que guardam de mais sagrado, seu dom.


[i] TOLSTOY, Liev, O que é Arte?, p. 189, Editora Nova Fronteira, 2016, 2ª edição.

[ii] GASSET, José Ortega y, A desumanização da arte, p. 19, Cortez Editora, 2012, 6ª edição.


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