O triunfo do mal

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O longa Coringa não é um entretenimento para crianças

Isso é o mínimo que se possa dizer sobre o filme da Warner Bros, dirigido por Todd Philips.

A crítica que permeia a película também disse o mínimo e, por esse mesmo motivo, se faz necessário dedicarmos o artigo dessa quinzena para falarmos um pouco sobre essa polêmica obra.

A preocupação parece girar em torno do fato de que o filme é violento e carrega algumas cenas de tiros de armas de fogo e assassinatos brutais. Ora, alguém é capaz de dizer que nos últimos dois anos não assistiu um filme, série ou novela que não contenha esses elementos? Acredito que, dessas cenas, quase todos são capazes de se distanciar e se colocar naquela posição de envolvimento mínimo de um privilegiado espectador que tem total ciência de que todo aquele sangue foi feito de ket-chup. Ou não? Bom, então não vejo isso como problema.

Seguindo a linha de outros pensadores, o psicanalista Igor Caruso afirma que todos possuem níveis potenciais de neurose, que se manifestam em graus diversos em todos os indivíduos; em alguns se desenvolve em demasia, naqueles muito pouco e em outros ainda quase nada. Funciona como os vícios e as virtudes: quem nunca se sentiu acovardado numa situação desconfortável? Portanto, praticamente todas as doenças psicológicas teriam suas causas na absolutização de algum termo (com exceção daquelas de causa psicossomática – correção do pensamento promovido por Viktor Frankl).

Então sugiro que sejamos severos na análise a partir das nossas próprias experiências: será que a consecutividade de transtornos e angústias vindos do ambiente externo se assenhora das nossas atitudes e reina em nosso destino? Ou isso ocorreria apenas na mente de um potencial psicopata? Na realidade, ao que parece, o diretor procura levantar aquele velho adágio falacioso e caquético de Rousseau de que a natureza humana é boa mas a sociedade a corrompe. Há quem siga essa instrução, mas não passa de absolutização de um termo (sintomático nos nossos dias).

O diretor Philips se sentiu ofendido pela crítica e respondeu que trata-se de um “filme complicado” e, em outras palavras, disse que as pessoas não deveriam se abalar com filmes complicados e, ao contrário, se esforçarem para tentarem entender o Coringa. Mas sentir-se incomodado com o desfecho do filme é uma questão de ignorância?

O spoiler é inevitável para que a análise seja completa. A “moral na história” (e não moral da história) é o que sempre esperamos, ao menos nos filmes norte americanos – já que a maior parte dos ditos cults europeus são impregnados de falta de desfecho e neutralidade moral – ou, pelo menos, quando se trata de longas de heróis.

Tudo bem, não temos a história de um herói, isso é evidente. Porém, temos a ascensão de um vilão, tão empática e carismática como a trajetória da Capitã Marvel. A grande diferença entre esta e Joker é que o filme da Marvel é engrandecido com uma virtude inequívoca pelo fato da personagem buscar a Verdade, e tão logo, o Bem. É isso que ela faz ao buscar sua origem, sua verdadeira causa e, desse modo, “ficar do lado certo”. O vilão se afunda em niilismo. Nada mais.

Na ausência do bem e da verdade, só temos o mau e o engano. Esse vazio diabólico é exacerbado no filme de Philips e vai na contra mão do que podemos chamar da tradição da arte no que tange a sua preocupação pela purificação do espectador (a catarse), que se identifica com uma personagem admirável, muitas vezes cheia de defeitos, mas benéfica e bem-intencionada. Se a arte não se servisse de nos apresentar bons exemplos qual seria sua responsabilidade social que Viktor Frankl tão bem explicou em Um Sentido Para A Vida – Psicoterapia e Humanismo? Com efeito, o anjo diabólico, ao fim do filme, percorre o corredor do sanatório em direção à luz, de maneira a simbolizar a sua “conquista do nada”: matar sem justificativas e ser enviado ao fundo do poço são suas obras mais belas.

O psicanalista austríaco Viktor Frankl viveu durante três anos preso em campo de concentração nazista e desenvolveu a corrente psiquiátrica humanista conhecida como Logoterapia

Essa inversão deve ser, no mínimo, perturbadora, principalmente para aqueles que tiveram a iniciativa de levar os filhos jovens.

Onde está o bem, que não aparece nem nas personagens mais proeminentes do filme? Aqueles que sempre foram os “co-heróis” dos quadrinhos do Cavaleiro das Trevas, no filme, estão repletos de defeitos, imperfeitos e indiferentes ao sofrimento alheio. O pior, são condenados por serem… ricos! Hual, que pretexto para se fincar a faca da discórdia e promover a luta de classes através da arte!  Nesse ponto o filme chega a ser caricato e patético no que tange aos acontecimentos forçosos no intento de maltratar o pobre palhaço até identificarmos razões suficientes para suas atitudes de resposta a esse “meio opressor”.

O filme não é complicado, é, inclusive, bem nítido com relação aos propósitos do autor. O bem está longínquo e subentendido na figura do menino que tem seus pais assassinatos numa viela. Entretanto, reparem: este é frágil e ninguém garante que tal criança se torne o esperado Batman nessa versão trágica. Mais provável – diante de todo esse quadro – que seja um ressentido filhinho de papai que não liga para os problemas mentais do pobre irmão. Não há esperança em Coringa, não há salvação.


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